quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A menina e a cerca viva


Abrindo os olhos pra dentro, ainda sou capaz de sentir com nitidez o riso saboroso da menina depois do segundo psiu dirigido para o moço bonito. Foi daqueles risos marotos que acompanham as artes consideradas bem-feitas, a autoria da traquinagem preservada, a crença absoluta na inexistência de vestígios. Foi daqueles risos grandes que se espalham rápido na gente mesmo quando precisam acontecer sussurrados por exigência do contexto.

Lá no meio da rua, o percurso interrompido, o moço olhava para os lados todo interrogativo, tentando localizar de onde partira o repentino chamado que sabia ser para ele, o único que passava por ali naquele instante. Do outro lado da cerca, supostamente escondida, ela ria baixinho por deixá-lo curioso e poder acompanhar sua reação sem que ele pudesse vê-la. Mas, o riso durou pouco, esconderijos podem ser traiçoeiros.

No afã da brincadeira, a menina desconsiderou um detalhe óbvio para não fugir à regra, que costumam ser óbvios os detalhes despercebidos por quem tenta se esconder. Ela esqueceu que a cerca viva de flores vermelhas que se estendia por todo o terreno da casa tinha brechas entre as folhagens também lá do lado de fora, as mesmas que lhe permitiam ver toda gente que passava na rua, lá do lado de dentro. Chamou o tal moço com o sentimento de que estava escondida por trás de um muro de concreto, mas a verdade é que o único muro com que contava era feito de folhas. Frágil assim. Devassável assim. Delator.

Quando ele conseguiu localizar o seu pequeno vulto por trás das folhagens, caminhou na direção do ponto da cerca onde até então ela se imaginava escondida. Ao vê-lo se aproximar, o coração acelerado pelo susto de se saber descoberta, ficou tão paralisada que não teve pernas pra correr. Calmamente, ele se abaixou lá no lado de fora para ficar na mesma altura em que ela estava lá no lado de dentro. O moço a olhou bem dentro dos olhos, abriu um sorriso enorme, levantou e retomou o seu caminho. Eu retomei o meu.

Muitas vezes, nós nos escondemos uns dos outros para nos protegermos e também juramos ser de concreto o nosso muro de folhas. Nós nos escondemos por contraditória defesa, porque, no fundo, além de todo e qualquer medo nosso, a verdade é que tudo o que mais queremos é olhar e sermos olhados com amor. Nosso corpo com tudo o que faz parte do seu reino, nossas palavras, nossos silêncios, nossos gestos, nossa ausência de gestos, tudo isso diz, tudo isso são brechas entre as folhagens que nos revelam o tempo inteiro, mas a gente nem desconfia ou simplesmente esquece. Não é raro, achamos que nossos sentimentos estão escondidos quando partes da alma estão todas de fora.

Nossas supostas cercas também são vivas. Na maioria das vezes, desnecessárias.

(Texto de Ana Jácomo)

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