quarta-feira, 30 de março de 2011

Fora do ar temporariamente

Queridos leitores,

Por motivo de força maior, o blog vai ficar por alguns poucos dias fora do ar.
Peço desculpa aos que me acompanham, mas prometo voltar em breve.

Um beijo no coração de cada um...

segunda-feira, 28 de março de 2011

Tem vez que cansa


Tem vez que cansa. Cansam portas fechadas, chaves que não abrem as portas fechadas, a angústia por ainda não se saber como abri-las. A vontade que tece o seu ninho nos galhos mais verdejantes e passa tempos chocando ovos que parecem que não vão mais se romper. A espera pelo vôo das borboletas que demoram crisálidas para se desvencilhar dos casulos. O repetido surgimento do não quando a vida da gente prepara incansáveis banquetes de boas-vindas para o sim. O quase que se prolonga tanto que causa a impressão de ser interminável. E, à espreita, sempre acompanhando os movimentos da nossa coragem, à distância, a perigosa perspectiva do nunca, aguardando cada brecha criada pelo cansaço para tentar nos dissuadir dos nossos propósitos.

Tem vez que cansa, sim. E parece que somos incapazes de mais um único passo fora do território do nosso cansaço. O ânimo desaparece sem deixar vestígios, pegadas na areia que nos levem até onde as suas águas refluem. Sabemos que ele permanece lá, em algum lugar que temporariamente não acessamos, como o sol por trás de nuvens que querem chover mas não conseguem. Sabemos que ele está lá e que precisa apenas de um tempo para se recompor. Para soprar as nuvens e voltar à cena. Para retomar o caminho com a gente. Para nos lembrar outra vez, depois de outras tantas, que, aconteça o que acontecer, sob hipótese alguma queremos desistir do que nos importa.

Tem vez que cansa. Não há nada que possamos nos dizer que revitalize, de imediato, a crença na nossa capacidade de transformação. Sequer conseguimos ouvir a nós mesmos, a comunicação é interrompida pelos ruídos momentâneos da negatividade. Aquela conversa fiada mental que não nos leva a nenhum lugar bacana, o olhar estreito que não vê coisa alguma além do nosso próprio desânimo. Esse cansaço às vezes é acompanhado por uma tristeza muito doída, que pede o nosso melhor abraço; outras, por uma raiva que pode se fantasiar com um monte de disfarces. Quando a gente se cansa em demasia, o coração não canta, as cores desbotam, o tempo se arrasta pelos dias como se estivesse preso a imensas bolas de ferro.

Tem vez que a vida da gente cansa. Pele sem viço, olhos sem lume, pés doloridos, os ombros retesados pelo peso que carregamos. Cansa e senta um pouco para descansar, respirar grande, recobrar o fôlego. Cansa e procura sombras de árvores, banhos de silêncio, acalantos capazes de fazer os medos dormirem. A vida da gente cansa, sim, vez ou outra. Quando acontece, o melhor a fazer é ouvir-lhe as razões com o coração. Permitir-lhe o cansaço e uma pausa pra repouso. Trocar os lençóis, suavizar a luz, massagear-lhe as costas, e lhe dizer mais ou menos assim: descansa um pouco, minha vida. Descansa. Depois, fica aqui, de novo, inteira comigo. Vem regar as sementes que ainda vão florescer.

(Texto de Ana Jácomo)

sexta-feira, 25 de março de 2011

Na berlinda, o coração


Há momentos em que tudo o que a gente precisa é dar colo para o próprio coração. Aconchegá-lo no nosso olhar de escuta. Deixar que perceba que naquele instante todas as outras coisas podem nos esperar um pouco; ele, não. Ele é o nosso rei e o nosso reino. O papel para desenho e a caixa de lápis de cor. A música e a orquestra. Nossa bússola e nosso mar. A flor, o pólen, a borboleta, ao mesmo tempo. A colméia e o mel. O centro onde tudo principia e para o qual tudo converge. Ele não pode esperar.

O coração da gente gosta de atenção. De cuidados cotidianos. De mimos repentinos. De ser alimentado com iguarias finas, como a beleza, o riso, o afeto. Gosta quando espalhamos os seus brinquedos no chão e sentamos com ele para brincar. E há momentos em que tudo o que ele precisa é que preparemos banhos de imersão na quietude para lavarmos, uma a uma, as partes que lhe doem. É que o levemos para revisitar, na memória, instantes ensolarados de amor capazes de ajudá-lo a mudar a freqüência do sentimento. Há momentos em que tudo o que precisa é que reservemos algum tempo a sós com ele para desapertá-lo com toda delicadeza possível. Coração precisa de espaço.

(Texto de Ana Jácomo)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Relacionamento saudável


Quando se quer um relacionamento a dois saudável, é preciso estar aberto para o que vier e aprender a lidar com o desejo de controlar tudo. Afinal somos aprendizes do amor. Atualmente, muitas pessoas optam por morar sozinhas para adquirir independência. Há casais, entretanto, que começam a morar juntos, para experimentar a vida a dois, antes mesmo de assumir um compromisso de casamento e, muitas vezes, só pensam em se casar se a idéia de ter um filho estiver amadurecida.

A permanência da relação está diretamente ligada à intensidade e a profundidade da parceria. Quando isso se esvai, a relação termina, com alegação de incompatibilidade de gênio. É justamente na busca desse aprofundamento afetivo que muitos casais caem na própria armadilha. Ao esperar por uma comunicação aberta, onde tudo deve ser partilhado com o parceiro, desde os casos antigos, até casos atuais, não suportam o sentimento de serem excluídos da intimidade do outro.

Quando são traídos, querem saber os detalhes, apesar da dor do conhecimento, pois atenua o sentimento de exclusão. No desejo de transparência doentia, esconde-se o desejo de controlar o parceiro. A lealdade absoluta, além de cruel, é grosseira.

Em nome da liberdade, onde cada um faz o que deseja, como se isso fosse possível, o desejo é ilimitado, o homem está fadado a escolher e, portanto, a lidar com frustrações. Ao tentar negar isso e erguer a bandeira da liberdade total, reflete a dificuldade da entrega amorosa, em uma tentativa de fugir da dor da possibilidade de perda.

Acredita-se que em um relacionamento amoroso não pode haver trincas, porque uma pequena falha a relação estará comprometida. Por isso, para não enfrentar essas dores e decepções, a pessoa pode optar viver só na paixão, que é intensa, curta e de pouca profundidade, pois quando o sentimento de tristeza pedir acolhimento não o encontrará nessa relação.

A pessoa pode se isolar, vivendo uma vida de eremita, porque a sociedade de hoje possibilita que o indivíduo possa até trabalhar sem travar nenhuma relação íntima com alguém. Mas o que é exigido de nós para termos um bom relacionamento, já que no fundo é isso mesmo que queremos? Ninguém nasceu para viver sozinho. Crescemos na interação com o outro. A alma conclama por viver um amor. Mas logo vem o medo de perder a liberdade: Amar ou ser livre? Abrir mão de si para o outro entrar?

Acredito que essa atração se dá de forma totalmente inconsciente, e que é a sabedoria interna de cada um que elege o parceiro, num impulso genuíno de evolução. É como se soubéssemos que aquela pessoa tem algo que nos auxiliará nos processos evolutivos do nosso ser. E uma das maiores felicidades do homem é quando ele se reconhece crescendo, evoluído enquanto pessoa.

Deste impulso surge a curiosidade inicial de saber mais sobre o outro. O encanto dos primeiros encontros é perceber o interesse do outro em ouvir e ser ouvido, em estar agradando, podendo ser espontâneo e perceptivo. A gratidão é uma forma de expressão do amor, que reconhece as gentilezas ao retribuí-las e reforça os laços afetivos. Algumas pessoas desvalorizam o que recebem, pois confundem gratidão com fragilidade.

Perceber que é nas diferenças individuais que se pode ampliar a percepção de mundo e crescer, não querer impor a sua razão, mas compreender a maneira do outro ser, respeitar e se mostrar realmente interessado no que o outro faz. A admiração inicial que se tem por alguém reflete exatamente o que nos falta.

Durante a relação temos a tendência de criticar e denegrir determinadas atitudes, caso não venhamos a desenvolvê-las em nós e, para isso, requer auto-conhecimento de nossas próprias limitações, amorosidade consigo e tolerância. Ninguém sabe tudo sobre si mesmo. Portanto, não pode ter a arrogância de achar que já sabe tudo do outro, pois isso acaba com o interesse e causa distanciamento.

Poder ouvir o outro com o mesmo interesse inicial fortalece e mantém os laços afetivos, pois as pessoas mudam. O homem de hoje não é mais o jovem de ontem. Manter acessa a chama do interesse, da curiosidade, da admiração é manter o amor em profunda efusão.


(Desconheço a autoria)

“Foi, em parte, por minha culpa que nos divorciámos. Tendia a colocar a minha mulher num pedestal”. - Woody Allen

quarta-feira, 23 de março de 2011

Resista


RESISTA um pouco mais, mesmo que as feridas latejem e que a sua coragem esteja cochilando.

RESISTA mais um minuto e será mais fácil resistir aos demais.

RESISTA mais um momento, mesmo que a derrota seja um imã; mesmo que a desilusão caminhe em sua direção.

RESISTA mais um pouco, mesmo que os invejosos digam para você parar; mesmo que a sua esperança esteja no CTI.

RESISTA mais um momento, mesmo que você não possa avistar ainda a linha de chegada; mesmo que as inseguranças brinquem de roda a sua volta.

RESISTA um pouquinho mais, mesmo que a sua vida esteja sendo pesada como a consciência dos insensatos e você se sinta indefeso como um pássaro de asas quebradas.

RESISTA porque o último instante da madrugada é sempre aquele que puxa a manhã pelo braço e essa manhã, bonita, ensolarada, sem algemas, nascerá para você em breve, desde que você resista.

RESISTA, porque eu estou sentada na arquibancada do tempo torcendo ansiosa para que você resista e ganhe de Deus o troféu que merece: a felicidade.

(Texto de Ana Jácomo)

terça-feira, 22 de março de 2011

Onde começa o amor


Quando eu caía, nos meus tempos de criança, abria o berreiro e, num passe de mágica, aparecia um monte de adultos: mãe, pai, avós, tios, bisavô. Só faltava a imprensa. Até o cachorro da época, que nem gostava muito de mim porque tinha ciúmes da minha mãe, corria para ver o que eu havia aprontado daquela vez. Geralmente, nada: era uma menina muito tranqüila. Tanto, que se fosse possível voltar no tempo eu resgataria a oportunidade de ser um pouco mais levada. Como não é, fica pra próxima.

Caía como gente de toda idade cai. Por descuido. Por uma momentânea falta de equilíbrio. Sem saber que troço aconteceu para confundir tanto as pernas. Aí vinha a parte boa do tombo: com exceção do cachorro, que não queria conversa comigo, era comum eu ganhar beijinhos daquela turma, sob a alegação de que o carinho faria o susto passar. Às vezes, eu nem estava mais assustada, não havia nada doendo, mas prolongava o choro só para ser mais beijada. Eu era tranqüila, mas não era boba.

Doce sabedoria, aquela: joelhos e braços continuavam feridos por alguns dias, mas o susto realmente passava logo depois do cuidado carinhoso. Para os machucados do corpo, existem alternativas para curativo. Mas, para os sustos dos tombos que a gente leva na vida, o que é bom mesmo é amor. Sem talvez perceberem, aqueles meus queridos protetores faziam algo muito importante ao permitir que o meu susto fosse reconhecido. As manchas roxas na pele tendem a desaparecer num curto período de tempo, com ou sem aplicação de pomada. As manchas que os sustos colorem na alma, não. Essas precisam de outro tipo de atenção para serem dissolvidas.

Alguns sustos somente se dissipam quando encontramos alguma palavra, algum carinho, alguma luz, que os libertem. Susto doído aprisionado pode virar um ponto de obstrução na alma que dificulta que a vida flua mais contente. A gente pode escolher fingir não lembrar que existe uma tristeza que não foi beijada ali, mas isso não faz com que ela pare de doer em silêncio, e poucas coisas são tão perigosas como as dores que crescem sem fazer barulho. Olhar, reconhecer, chamar pelo nome, tratar, é escolher beijar, esvaziar, e seguir.

De sustos doídos, de outra natureza, muito diferentes dos tombos da infância, nós entendemos bem. Não acho que seja possível passar pela vida sem susto algum. Não, não temos controle com relação a isso. Com toda a tecnologia do nosso mundo, não existe uma tecla que, ao ser apertada, nos impeça definitivamente de sofrer. Ninguém escapa da dor. Eu, pelo menos, nunca conheci uma pessoa que nunca tenha vivenciado o sofrimento, de alguma forma, em algum lugar da caminhada.

Por mais que a vivência seja solitária, não estamos sozinhos nesse sentimento. Em qualquer local do planeta, todos sabem do que se trata. Às vezes, até achamos que sofremos mais do que os outros e ficamos estagnados nessa crença. Mas, isso não vem ao caso. Não nos interessa competir para saber de quem é a dor maior. O que interessa é descobrir como podemos esgotá-las. Curá-las. Transformá-las. E é aí que entra a metáfora dessa história: depois de adultos, isso começa com o nosso próprio reconhecimento. Com o nosso próprio beijo. Com toda gentileza possível com a nossa vida. Com a nossa permissão.

De vez em quando, reencontro pessoas que passo muito tempo sem ver e elas me contam de novo sobre a mesma dor. Aquela que, com o passar dos anos, costuma se ramificar em outras tantas, às vezes já impressas no corpo. Pode mudar o cenário, as personagens, mas o argumento está intacto. E a impressão que me dá, em algumas circunstâncias, é que, de alguma maneira, elas continuam lá na infância, aguardando vir somente de fora os beijos para os seus sustos, o curativo para os seus machucados. É como se ficassem paralisadas nessa expectativa.

Aperta o meu coração, uma vontade de dizer sem saber se o outro quer ouvir: cuida de você, você pode, você é capaz, não fica aí nesse lugar. Vontade de dizer, compassiva, com empatia, porque eu muitas vezes também fiquei esperando. Até começar a entender que, depois que a gente cresce, a proteção amorosa, o suporte, a delicadeza, precisam começar na nossa relação com nós mesmos. É muito bacana, uma dádiva, termos relações de troca afetuosa e zelo recíproco na nossa vida. Uma benção receber amor. Mas quando a gente dói, a gente precisa saber formas de cuidar da própria dor com o jeito carinhoso com que gostaríamos de ser cuidados pelos outros, com a delicadeza com que cuidamos de outras pessoas. A gente precisa se ter, antes de tudo. O beijo precisa começar em nós. 

( Texto de Ana Jácomo)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Itinerário


Não quero viver como uma planta que engasga e não diz a sua flor. Como um pássaro que mantém os pés atados a um visgo imaginário. Como um texto que tece centenas de parágrafos sem dar o recado pretendido. Que eu saiba fazer os meus sonhos frutificarem a sua música. Que eu não me especialize em desculpas que me desviem dos meus prazeres. Que eu consiga derreter as grades de cera que me afastam da minha vontade. Que a cada manhã, ao acordar, eu desperte um pouco mais para o que verdadeiramente me interessa.

Não quero olhar para trás, lá na frente, e descobrir quilômetros de terreno baldio que eu não soube cultivar. Calhamaços de páginas em branco à espera de uma história que se parecesse comigo. Não quero perceber que, embora desejasse grande, amei pequeno. Que deixei escapulir as oportunidades capazes de bordar mais alegrias na minha vida. Que me atolei na areia movediça do tédio. Que a quantidade de energia desperdiçada com tantas tolices poderia ter sido útil para levar luz a algumas sombras, a começar pelas minhas.

Que eu saiba as minhas asas, ainda que com medo. Que, ainda que com medo, eu avance. Que eu não me encabule jamais por sentir ternura. Que eu me enamore com a pureza das almas que vivem cada encontro com os tons mais contentes da sua caixa de lápis de cor. Que o Deus que brinca em mim convide para brincar o Deus que mora nas pessoas. Que eu tenha delicadeza para acolher aqueles que entrarem na roda e sabedoria para abençoar aqueles que dela se retirarem.

Que, durante a viagem, eu possa saborear paisagens já contempladas com olhos admirados de quem se encanta pela primeira vez. Que, diante de cada beleza, o meu olhar inaugure detalhes, ângulos, leituras, que passaram despercebidos no olhar anterior. Que eu me conceda a benção de ter olhos que não se fechem ao espetáculo precioso da natureza, há milênios em cartaz, com ou sem platéia. Quero aprender a ser cada vez mais maleável comigo e com os outros. Desapertar a rigidez. Rir mais vezes a partir do coração.

Quero ter cuidado para não soltar a minha mão da mão da generosidade, durante o percurso. E, quando soltá-la, pelas distrações causadas pelo egoísmo, quero ter a atenção para sincronizar o meu passo com o dela de novo. Quero ser respeitosa com as limitações alheias e me recordar mais vezes o quanto é trabalhoso amadurecer. Quero aprender a converter toda a energia disponível às mudanças que me são necessárias, em vez de empregá-la no julgamento das outras pessoas.

Que as dificuldades que eu experimentar ao longo da jornada não me roubem a capacidade de encanto. A coragem para me aproximar, um pouquinho mais a cada dia, da realização de cada sonho que me move. A idéia de que a minha vida possa somar no mundo, de alguma forma. A intenção de não morrer como uma planta que engasgou e não disse a sua flor.

(Texto de Ana Jácomo)

sexta-feira, 18 de março de 2011

A lua e adjacências


Era linda, a lua. Linda e cheia. Tão linda e tão cheia, que deixei as sacolas do supermercado aguardarem um pouquinho no chão para me permitir admirá-la. Um instante de recreio para os olhos. Um respiro improvisado para o dia. Parada no meio da rua, o olhar voltado para o céu, acabei despertando a curiosidade de algumas pessoas que passavam por mim: olhavam também para o alto na tentativa de compreender a motivação do meu gesto.

Que coisa, afinal, estava acontecendo lá em cima que havia feito eu interromper o meu percurso? Um OVNI? Uma apresentação noturna da esquadrilha da fumaça? Um sinal apocalíptico? A iminência de uma tempestade literalmente de parar o trânsito? A maioria, suponho, não viu coisa alguma que justificasse o meu olhar contemplativo. A lua?! Não, não podia ser somente isso, embora seja coisa à beça. Depois de olharem para o alto sem desvendar o enigma, olhavam para mim ainda mais interrogativos. Será que eu estaria sofrendo de algum problema súbito na cervical por causa do peso das sacolas?

A gente não costuma mesmo mais olhar a lua com a freqüência com que ela merece ser olhada. A lua e adjacências. Às vezes, porque os prédios não deixam. Porque para ver um pedacinho dela quando já é possível, altas horas da noite, precisamos nos contorcer tanto junto às janelas dos apartamentos onde moramos, que tememos que um vizinho bem-intencionado interfone para o síndico para comunicar a suspeita de uma tentativa de suicídio. Às vezes, também, não reparamos mais a lua nem as estrelas nem o azul macio dos dias ensolarados porque corremos muito e parece impossível reservar um único minuto do nosso dia de 24 horas para simplesmente olhar para o alto e se admirar com as belezas de lá. Às vezes, ainda, porque esquecemos que existe um céu para se olhar, os olhos na maior parte do tempo rentes à altura do nosso corpo e das nossas preocupações.

Acho que é preciso a gente se encantar, de novo, com essas belezas simples e grandiosas. Há um espetáculo precioso, gratuito, da natureza, mas a platéia está cada vez mais esvaziada. Não sei se acontece o mesmo com as outras pessoas, mas eu ouço raros comentários sobre a beleza da lua da noite anterior. Sobre a ternura sentida diante de uma árvore florida vista no trajeto para algum lugar. Sobre arrepios de emoção que alguém experimentou ao olhar o mar no fim de semana. Sobre a memória afetiva que veio à tona quando alguém, ao contemplar o céu noturno, tentou localizar a Cruzeiro do Sul, as Três Marias, a Estrela D’alva, que eu via no quintal lá de casa, já de manhãzinha, e depois me disseram que era o planeta Vênus. Raros para não dizer nenhum.

É preciso ter olhos frescos para sermos capazes de admirar belezas aparentemente antigas. A beleza envelhece quando o olhar da gente perde o viço. Toda beleza é capaz de vestir roupa nova porque outro também é o nosso olhar. Não ignoro o sofrimento. Não banalizo as dores que a gente sente, que não são poucas. Como a maioria de nós, num único dia, visito territórios dos mais diversos sentimentos e às vezes é bem difícil experimentar alguns deles. Mas, eu acho que, à parte os embaraços do caminho, quando a gente se fecha para a beleza do mundo, a vida fica insípida. Quero continuar a ter esse olhar capaz de se encantar com coisas que vê mesmo quando, particularmente, a minha história se torna difícil de ser lida. Por elas, largo as sacolas do supermercado no chão para, por alguns instantes, ser apenas aquela que as contempla. Os problemas continuam, mas o coração ganha um doce que muitas vezes nos ajuda a temperar os amargos.

(Texto de Ana Jácomo)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Peraltices


Certa tarde dessas, me permiti fazer peraltices. Afinal, apesar do meu tamanho e idade, minha alma continua sendo de criança. E criança, mais que ninguém, sabe como e quando fazer suas travessuras, mesmo sabendo o que é certo ou errado. Ah, o errado! Nessas horas ele nos chama com um colorido diferente. Nessas horas ele nos vem com uma aquarela nas mãos e com uma tela enorme branca e nos diz: “Pinta! É sua.”

Então, coloquei a tela debaixo do braço, peguei correndo minha aquarela e me mandei. Sumi do escritório, não atendia mais telefones, apenas ficava online (afinal, ainda resta alguma responsabilidade) e fui fazer um lanche para as amigas na minha casa.

Não qualquer amiga, mas amigas do passado, de 20 anos atrás. Essas que têm sempre um lugar muito especial no nosso coração. Claro que amigos são todos especiais, mas o tempo revela quem as pessoas realmente são, e com o passar dos anos a gente reconhece exatamente o que é uma amizade verdadeira.

Quando juntas, parecíamos ter voltado à nossa adolescência. Os assuntos do passado nos rondavam e as risadas eram soltas e descontraídas. Todas sentadas no chão da minha sala, os nossos olhos brilhavam, não só pelo recordar dos momentos vividos, mas pela preciosidade de estarmos juntas novamente, embaladas pelo mesmo sentimento de amor e amizade, regado à muita sinceridade e, claro, confiança.

Várias foram as confissões, revelações e surpresas. Várias bobagens apareciam e a corda da gargalhada era girada. Chorávamos de tanto rir. Que delícia de tarde!

Claro que falamos de coisas do presente, ouvíamos umas às outras, aconselhávamos dentro do respeito maior por cada uma. A realidade insiste em nos bater a porta sempre, portanto é insano não abrir e viver tudo que está ali à sua mão naquele momento.

Quando olhávamos ao nosso redor, o presente maior era ver a segunda geração reunida. Nossos filhos, praticamente da mesma idade, brincando e se divertindo tanto quanto nós, com um zelo especial um pelo outro.

Olhando tudo aquilo, senti uma paz enorme dentro do peito e agradeci a Deus por aquele momento, por essas amigas, por nossos filhos, nossa leal amizade, nossos vínculos, nossos momentos do passado, nossas aspirações do futuro e pude entender que a felicidade plena é muito mais simples do que se imagina. Basta abrirmos os olhos do coração, aquele puro, igual de criança.

terça-feira, 15 de março de 2011

Um dia de liberdade


Fico imaginando, às vezes, se saberia viver um dia em que eu não tivesse que nada. Um dia sem expectativas. Sem lugar algum onde chegar. Que fosse surpresa e improviso. Um dia de cara risonha ou não, mas de cara sem maquiagem. Genuíno. Verdadeiro. Em que eu pudesse experimentar a liberdade de uma criança. Que apenas vive. Apenas é. Sem tentar dar nome a tudo o que sente. Sem simular o que não sente. Sem ter que questionar, compreender, responder. Sem ter que.

Um dia sem medo algum. Em que ao amanhecer para ele, eu pudesse largar o suposto comando e deixar o vento desenhar a rota. Leme e bússola, esquecidos. Eu, distraída, fluindo, sendo, com o movimento do mar. Um dia diferente de todos os outros e igual no desejo de me fazer feliz. De me sentir inteira. De ser. Um dia em que eu pudesse afrouxar a roupa de carne e osso. Deixar o julgamento repousar. Permitir que o caminho se mostrasse a cada passo que o coração desse, sem perguntar aonde ele me levaria, porque ao menos nesse dia eu teria o sentimento nítido de que o meu coração sabe exatamente para onde me leva.

Fico imaginando se eu seria capaz de me dar esse dia e se eu saberia vivê-lo, porque a liberdade também pode assustar. Muitas vezes nos sentimos próximos de abrir a porta da cela que nos mantém cativos e recuamos. Não temos ainda coragem suficiente para atravessá-la, pois tudo o que conhecemos é como se sentir preso e, ainda que isso já nos cause desconforto, temos medo de atravessar a porta.

Um dia em que não tivesse que desempenhar nenhum dos papéis que afirmo serem meus, porque não existiria papel algum. Nem palco. Nem roteiro. Nem com quem contracenar. Aqueles que eu encontrasse também não caberiam dentro de nenhuma personagem. E eu os olharia como se fossem livres para ser simplesmente quem são. Livres de qualquer história que não fosse aquela que o próprio coração escrevesse.

E porque despertaria com olhos frescos, nesse dia eu olharia para cada pessoa do meu convívio como se olhasse pela primeira vez. E descobriria, provavelmente, em cada uma delas, nuances, belezas, singularidades, que meus olhos acostumados não percebem mais. Olharia com o puro olhar. Sem que nada pudesse confundi-lo nem disfarçar-lhe algum detalhe. Talvez até me desse conta de que muito do que afirmo ver não passa de distorções que surgem nos tempos em que a gente se afasta muito da própria alma e passa a ter dificuldade de enxergar o que realmente importa.

Fico imaginando se eu saberia viver esse dia, porque com todos os apelos cotidianos, a gente pode se desacostumar com a liberdade. Um dia que acontecesse como uma colônia de férias para a alma. Que tivesse o cheiro da chuva quando toca a aridez. Um dia sem censor, em que a vida respirasse relaxada. Em que trocássemos tanto amor que parecessemos ter o coração beijado pela vida. E em que o tal cansaço que experimentamos não nos impedisse de sentir que estamos vivos, porque muitas vezes nos comportamos como se não lembrássemos disso.

(Texto de Ana Jácomo)

segunda-feira, 14 de março de 2011

Tudo vira tema


É engraçado como na minha vida tudo vira tema de texto. Pode ser uma história bonita ou triste, acontecida comigo ou não. Pode ser sobre uma pessoa, uma cena do cotidiano, um sentimento, um objeto, uma dúvida. Pode ser sobre o dia ou a noite. Pode ser fatos da vida ou súbitos momentos de imaginação. Pode ser um filme, uma peça de teatro, uma música. Pode ser um momento ou a falta do que dizer.

Sempre tem algo pra me inspirar. São feches de luz que enfeitam o meu dia e isso é muito bom. O ruim é que nesses lampejos, nem sempre estou com tempo pra escrever ou com o computador à mão. Quando isso acontece, tudo se acumula, os temas se confundem e acabam se tornando um só. E, geralmente, tudo começa com um olhar amoroso e o texto acaba exalando somente amor.

Há textos de ira, insensatez, impaciência e mais um tanto de outros “in” alguma coisa, porque esses textos me revelam. Como disse Quintana, “Sou melhor por escrito”. Até porque escrevendo, podemos rascunhar, passar a limpo, nos perceber, nos revelar e nos acalmar por dentro.

É como se houvesse um emaranhado de idéias soltas dentro da minha cabeça e, ao escrever, tudo se assenta no lugar certo, por ordem alfabética ou cor, mas tudo se organiza.

Muitas vezes saio a procurar textos que tenham a ver comigo, com meus sentimentos e, minha ânsia por escrever aumenta ainda mais. Muitas vezes, nem termino o que estou lendo, pois a caixinha de caraminholas se abre e a bagunça está feita. É hora de começar a colocar tudo no papel.

E o tema de hoje é esse: o variado mundo dos temas, os quais diariamente me atraem, me chamam, me seduzem, me envolvem até que chegue o momento de, em seus colos, me esbaldar.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Saudade do mundo que eu vejo


Há saudades que caminham comigo aconchegadas num lugar gostoso que a memória tem. Sei que estão lá, mesmo quando demoro um bocado de tempo para apreciar as histórias que me contam. São porta-jóias que guardam encantos que não morrem. Caixinhas de música, que, ao serem abertas, derramam melodias que me fazem dançar com elas de novo. São saudades capazes de amenizar o frio de alguns instantes com os seus braços de sol.

Mas existem também saudades que pousam no meu coração de vez em quando e ficam de lá me olhando com aquele olho comprido do quer escuta. Não falam de lugares, pessoas ou épocas da minha vida. São espelhos que não refletem feições conhecidas. São saudades que entornam perfumes que somente a alma reconhece. Que sobrevoam regiões por onde apenas as emoções caminham. Que destampam ausências que a gente algumas vezes prefere ignorar.

São saudades de um mundo que tem cheiro de quintal lá da infância da gente. Que é macio para todos os seres que nem lençol recém-trocado. Que tem o timbre de voz amada quando toca o nosso ouvido. Um mundo bacana onde as pessoas têm clima de passeio. Onde não existem armas, visíveis ou não. Onde a gente vive com o sentimento de estar brincando de roda uns com os outros: se um leva um tombo reflete na roda inteira.

São saudades de um mundo contente feito céu estrelado. Feito flor abraçada por borboleta. Feito café da tarde com bolinho de chuva. Onde a gente se sente tranqüilo como se descansasse num cafuné. Onde, em vez de nos orgulharmos por carregar tanto peso, a gente se orgulha por ser capaz de viver com mais leveza. Um mundo onde as pessoas confiam umas nas outras, não pode ser de outro jeito se estamos em família na humanidade. Um mundo onde a culpa deixou de ser uma desculpa para não sermos felizes. São saudades de um mundo onde o respeito não tem cheiro de mofo: todos somos iguais e todos somos diferentes e isso é claro, natural e indiscutível.

São saudades de um mundo que lembra a pureza de amarelinha desenhada com giz no terreno da escola. Que lembra a alegria de chegar no céu quando a gente pulava amarelinha. Que lembra a melodia gostosa da risada do amigo. Saudades de um mundo sem hipocrisia. Sem diz-que-me-diz-que. Sem jogo. Ninguém quer ferir ninguém, por nenhum motivo. As boas intenções são mesmo boas. Há em cada pessoa um cuidado, um bem-querer, um zelo amoroso, com relação a todas as outras, porque essa é a natureza do coração humano. Um mundo onde todas as formas de vida são abençoadas por todas as formas de vida.

São saudades de um mundo onde a gente pode falar de coisas inocentes sem temer parecer ridículo. Onde podemos ser sensíveis e expressar a nossa sensibilidade sem sermos olhados como vítimas de uma doença grave. Onde a busca pelo conforto da alma é tão necessária quanto a busca pelo conforto do corpo. Onde podemos caminhar pelas ruas, descontraídos, sem temer ser atacados por outro ser humano. Um mundo no qual, em vez de propagar o medo, as pessoas utilizam a sua energia para propagar o amor. Saudades de um mundo que às vezes eu sinto tão intensamente que já parece de verdade. Já parece existir, de alguma forma. Um mundo no qual habito toda vez que eu o vejo.

(Texto de Ana Jácomo)

quinta-feira, 10 de março de 2011

Começando a despertar


Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que tudo começou a ganhar uma cara que, no fundo, eu já conhecia, mas que havia esquecido como era. Comecei a despertar do sono estéril que, com suas mãos feitas de medo e neblina, fez minha alma calar. E foi então que comecei a ouvir o canto de força e ternura que a vida tem.

Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que ninguém começa a despertar antes do instante em que algo em nós consegue deixar à mostra o truque que o medo faz. Só então a gente começa, devagarinho, para não assustar o medo, a refazer o caminho que nos leva a parir estrelas por dentro e a querer presentear o mundo com o brilho do riso que elas cantam. Só então a gente começa a entender o que é esse sol que mora no coração de todas as coisas. Não importa com que roupa elas se vistam: ele está lá.

Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a lembrar de onde é o céu e a perceber que o inferno é onde a gente mora quando tudo é sono. Comecei a sair dos meus desertos. E a olhar, ainda que timidamente, para todas as miragens, sem tanto desprezo, entendendo que havia um motivo para que elas estivessem exatamente onde as coloquei. Nenhum livro, nenhum sábio, nada poderia me ensinar o que cada uma me trouxe e o que, com o passar do tempo, continuo aprendendo com elas. Dizem que só é possível entendermos alguns pedaços da vida olhando para eles em retrospectiva. Acho que é verdade.

Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a compreender o respeito e a reverência que a experiência humana merece. A me dar conta de delícias que passaram despercebidas durante um sono inteiro. E a lembrar do que estou fazendo aqui. Ainda que eu não faça. Ainda que os vícios que o sono deixou costumem me atrapalhar. Ainda que, de vez em quando, finja continuar dormindo. Mas não tenho mais tanta pressa. Comecei a aprender a ser mais gentil com o meu passo. Afinal, não há lugar algum para chegar além de mim. Eu sou a viajante e a viagem.

Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a querer brincar, com uma percepção mais nítida do que é o brinquedo, mas também com um olhar mais puro para o que é o prazer. A ouvir o chamado da minha alma e a querer desenhar uma vida que passe por ele. A assumir a intenção de acordar a cada manhã sabendo para o quê estou levantando e comprometida com isso, seja lá o que isso for, porque, definitivamente, cansei de perambular pelos dias sem um compromisso genuíno. E comecei a gritar por liberdade de uma forma que me surpreendeu. Antes eu também gritava, mas o medo sufocava o grito para que eu não me desse conta do quanto estava presa.

Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que comecei a desejar menos entender de onde vim e a desejar mais aprender a estar aqui a cada agora. Só sei que descobri que a solidão é estar longe da própria alma. Que ninguém pode nos ferir sem a nossa cumplicidade. Que, sem que a gente perceba, estamos o tempo todo criando o que vivemos. Que o nosso menor gesto toca toda a vida porque nada está separado. Que a fé é uma palavra curta que arrumamos para denominar essa amplidão que é o nosso próprio poder.

Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. Só sei que não importam todos os rabiscos que já fizemos nem todos os papéis amassados na lixeira, porque todo texto bom de ser lido antes foi rascunho. E, por mais belo que seja, é natural que, ao relê-lo, percebamos uma palavra para ser acrescentada, trocada, excluída. A ausência de uma vírgula. A necessidade de um ponto. Uma interrogação que surge de repente. Viver é refazer o próprio texto muitas, incontáveis, vezes.

Não sei exatamente em que momento comecei a despertar. O que sei é que não quero aquele sono outra vez.

(Texto de Ana Jácomo)

quarta-feira, 9 de março de 2011

Sinto falta...


Eu nunca aceitei a simplicidade do sentimento. Eu sempre quis entender de onde vinha tanta loucura, tanta emoção. Eu nunca respeitei sua banalidade, nunca entendi como pude ser tão escrava de uma vida que não me dizia nada, não me aquietava em nada, não me preenchia, não me planejava, não me findava.

Nós éramos sem começo, sem meio, sem fim, sem solução, sem motivo.

Não sinto saudades do seu amor, ele nunca existiu, nem sei que cara ele teria, nem sei que cheiro ele teria. Não existiu morte para o que nunca nasceu...

Sinto falta da perdição involuntária que era congelar na sua presença tão insignificante. Era a vida se mostrando mais poderosa do que eu e minhas listas de certo e errado. Era a natureza me provando ser mais óbvia do que todas as minhas crenças. Eu não mandava no que sentia por você, eu não aceitava, não queria e, ainda assim, era inundada diariamente por uma vida trezentas vezes maior que a minha. Eu te amava por causa da vida e não por minha causa. E isso era lindo. Você era lindo.

Simplesmente isso. Você, a pessoa que eu ainda vejo passando no corredor e me levando embora, responsável por todas as minhas manhãs sem esperança, noites sem aconchego, tardes sem beleza...

Sinto falta de quando a imensa distância ainda me deixava te ver do outro lado da rua, passando apressado com seus ombros perfeitos. Sinto falta de lembrar que você me via tanto, que preferia fazer que não via nada. Sinta falta da sua tristeza, disfarçada em arrogância, em não dar conta, em não ter nem amor, nem vida, nem saco, nem músculos, nem medo, nem alma suficientes para me reter.

Prometi não tentar entender e apenas sentir, sentir mais uma vez, sentir apenas a falta de lamber suas coxas, a pele lisa, o joelho, a nuca, o umbigo, a virilha, as sujeiras. Sinto falta do mistério que era amar a última pessoa do mundo que eu amaria.
 
(Texto de Tati Bernardi)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Ao longo da estrada


Eu sei que às vezes é quase irresistível não dar trela àquela voz traiçoeira, nossa velha conhecida, que nos incita a desistir dos nossos sonhos com ares de quem propõe a coisa mais bacana do mundo. Não nos esparramarmos, doídos pra caramba e também com um algum conforto, na autopiedade, essa areia movediça ávida por engolir nosso lume.

Eu sei que às vezes é quase irresistível não desdobrar a lista de decepções que mantemos atualizada com zelo de colecionador para nunca nos faltar matéria-prima pra lamúria. Não relembrar sem economia de minúcias cada frustração vivida com o olhar amarrado e a tristeza viçosa que só fazem aumentar a dor da vez.

Eu sei que às vezes é quase irresistível não eleger um algoz e acentuar um pouquinho mais as nossas feições sofridas para as novas poses do nosso álbum de vítima. Não nos responsabilizarmos pela parcela de participação que nos cabe em boa parte das encrencas em que nos metemos, e que, se olharmos com olhos lúcidos, de preferência também lúdicos, às vezes nem é tão pequena como é mais fácil acreditar.

Eu sei que às vezes é quase irresistível não ficar morando na dor como se dor fosse casa de veraneio. Não arriscar um passo fora do terreno da nossa desesperança porque sentimos que nos sobra cansaço e nos faltam pernas. Eu sei que às vezes é quase irresistível. Eu sei que às vezes a gente não consegue mesmo resistir. E sei que quando não resistimos, está tudo bem: esse lugar também passa.

De apelo a apelo, vamos caindo e levantando ao longo da estrada, apurando o coração para tornar muito mais irresistível o nosso amor paciente e generoso por nós mesmos. Para desdobrar com maior frequência, na memória, a lista que conta as conquistas todas de que já fomos capazes, nós que tantas vezes parecemos tentar desmentir as nossas pérolas.

De apelo a apelo, vamos caindo e levantando ao longo da estrada, apurando o coração para fazer valer, na prática, o nosso respeito à oportunidade inestimável de estarmos aqui. A nossa intenção de não desperdiçar esse ouro que é o tempo, essa maravilha que é o corpo, essa graça que é a vida. Essa que, se olharmos com olhos lúcidos, de preferência também lúdicos, sempre inventa maneiras para se vestir de convite irrecusável de novo.

(Texto de Ana Jácomo)

quinta-feira, 3 de março de 2011

É proibido...


É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.
É proibido não rir dos problemas

Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,
Não transformar sonhos em realidade.

É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos

Não tentar compreender o que viveram juntos

Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,
Ser gentil só para que se lembrem de você,

Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,
Ter medo da vida e de seus compromissos,

Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,
Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se

desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,
Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.

É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,
Não ter um momento para quem necessita de você,

Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,
Não viver sua vida com uma atitude positiva,

Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.



(Texto de Pablo Neruda)

quarta-feira, 2 de março de 2011

Em degradê


Algumas preciosidades morrem baixinho, em dégradé. Como morrem as tardes. Como morrem as flores. Como morrem as ondas. Quando a gente percebe, já é noite e o céu, se está disposto a falar, diz estrelas. Quando a gente percebe, as pétalas já descansam o seu sorriso no colo do chão. Quando a gente percebe, o canto da onda já enterneceu a areia. Muitas dádivas que nos encontram, que nos encantam, têm seu tempo de viço, sua hora de recado, e seu momento de transformação em outro jeito de lindeza.

A noite também é bela do jeito dela. As pétalas caídas viram húmus para fertilizar o solo que dirá a vez de outras flores sorrirem. A areia molhada conta a canção da onda e da sua acolhida terna para a nossa vida descalça. Lutar contra a impermanência da cara das coisas é feito tentar prender o azul macio das tardes, segurar o viço risonho das flores, amordaçar as ondas. É inútil.

Costumamos esquecer que não podemos impedir a mudança: tudo dança a coreografia sábia e implacável da impermanência. Mas a música daquilo que verdadeiramente nos toca com amor, não importa o quanto tudo mude - e tudo muda -, não deixa nunca mais de tocar e viver, de algum jeito, no nosso coração.

(Texto de Ana Jácomo)

terça-feira, 1 de março de 2011

O que a mulher quer de um homem?


Recentemente um cliente pediu-me, com uma carinha meio marota, meio desconsolada, que escrevesse sobre o que as mulheres querem dos homens. "Nós homens estamos tão perdidos quanto ao que as mulheres esperam de nós! Estamos confusos." Com razão, porque antes sabia-se o que as mulheres queriam dos homens. Hoje não mais!

Antes, elas queriam ter um homem que lhes desse o sustento e filhos. Todo o valor social que uma mulher podia ter vinha do fato de se tornar "mãe de família". Uma mulher bem-sucedida, há poucas décadas atrás, que não fosse casada, era uma coitadinha, tão competente... mas "ficou prá titia!". Nem dinheiro, nem profissão, nem inteligência lhe conferiam, de fato, valor social. Só o casamento e principalmente a maternidade. Por isso as piadinhas: "ela laçou um bobo". Ter um homem era o fito, já que tudo o mais adviria disso.

O homem também tinha a sua posição marcada no jogo social se tivesse constituído uma família e se tornado um "homem de respeito". Também era respeitado por ter uma profissão, por ser inteligente e até mesmo não se perdia o respeito por ele se desse suas escapadinhas. O direito ao prazer sexual lhe era assegurado.

E agora José? A festa acabou. O mundo mudou e as mulheres também podem querer algo mais de um homem, além de que seja seu provedor e pai dos seus filhos.

Mas, afinal de contas, o que é que elas querem?

Sim, porque é bem sabido que os homens querem uma "amante na cama e uma dama na sociedade". Alguém contra? Eu acho uma ótima ideia, só que esta junção raramente se realiza. Então, qual a saída? Para ter prazer a mulher também vai "pular a cerca"?

Não! Eu tenho pra mim que o que querem as mulheres de hoje é o mesmo que os homens: um amante na cama (desbancando os malandros que tanto as atrai, que sabem seduzir e se fazer desejar) e um cara amigo e confiável fora dela.

Esta síntese pode ser pensada se considerarmos que amor, ternura pertencem a um campo, e desejo, tesão a outro, e que cada qual tem o seu momento de prática.

O amigo é aquele em quem confiamos, com o qual contamos, que preza a amizade o convívio, as afinidades.

O amante é aquele do qual nunca saberemos tudo. Nos deixa meio inseguras, sem saber o que ele pensa e o que é. Não é previsível. Romantismo demais? Não, essas são qualidades que todo ser humano tem se não estagnar-se, inclusive numa relação com uma falsa segurança (leia-se "morta").

O amigo traz segurança, o amante insegurança que provoca emoção, desejo.

Vale tentar?


(Texto de Luciene Godoy)

Status: Psicólogo

Ao psicólogo não é dado o martelo dos juízes, as prerrogativas dos promotores, nem o bisturi dos cirurgiões, somos pequenos clínicos ...