sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A nossa vitória de cada dia


Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. 

Não temos amado, acima de todas as coisas. 

Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. 

Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. 

Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. 

Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. 

Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. 

Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.

Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.

Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. 

Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. 

Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. 

Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. 

Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. 

Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. 

Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe. 

Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. 

Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.

Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. 

Temos chamado de fraqueza a nossa candura. 

Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. 

E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. 

(Texto de Clarice Lispector)

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